"A gente está criando uma ambiência para a mudança." José Mariano Beltrame
Notícias do FRONT
O muro divide. Do lado de cá, chegam notícias do front.
A empregada doméstica faltou três dias seguidos. Fato inusitado. Ela é querida. Parte da família. Profissional de primeira, séria, responsável, trabalhadora. Nunca deixara de avisar e de justificar ausência. Era estranha a falta de notícias. Mensagens, recados, inquietação: a patroa agitava-se. Finalmente, Glória voltou ao batente e se soube o que ocorrera. Caíra numa depressão súbita e devastadora, a que dera outro nome: doença dos nervos. Chegando em casa, sexta-feira, na favela, esperava-a, espetada na grade do portão, a cabeça do vizinho, dono da pequena oficina improvisada na esquina.
Mais calma, Glória recobrou a acuidade e foi capaz de uma análise surpreendente: além do abalo provocado pelo grotesco, além do sofrimento suscitado pela empatia humana, tanto quanto a ferida produzida pela perda de um amigo, havia também e intensamente o sentimento de vergonha, vergonha da comunidade, do lugar, de morar num lugar em que aquela barbaridade se praticasse. Era como se ela própria e sua família estivessem contaminadas por aquela doença medonha. Relatar o episódio a tornaria cúmplice, involuntariamente, expondo-a à degradação moral. Fechou-se em casa para expiar a dor, mas também para furtar-se a narrar o inenarrável, o inabordável, aquilo que só se conta, contaminando-se.
Do lado de lá vê-se melhor o muro, que é imperceptível aos moradores da cidade afluente, e intangível para os navegadores de primeira viagem. É de lá que vêm as histórias ausentes das coletâneas de Nelson Rodrigues. O Brasil que nosso maior dramaturgo narrava era outro, mais ingênuo - a crueldade raramente transbordava o risco do bordado familiar. As tramas cariocas desse início de século XXI são diferentes. Como a de dona Selma e suas filhas. Sua grande frustração é privar suas filhas da festa de casamento. Uma a uma, elas se casam em segredo. E comemoram resignadas sua felicidade clandestina. Selma conta que a grande festa que preparou para o primeiro matrimônio foi interrompido a bala. Os traficantes que dominavam a favela invadiram o salão, armados, humilharam os noivos e as famílias, e destruíram o cenário da celebração. Aquela lição serviria para toda a comunidade. Festas, só com autorização e participação dos donos do morro. Despotismo e violência arbitrária; ódio, impotência e medo, os males do Brasil são.
É preciso dizer mais? Está tudo aí, resumido, tudo que, no fundo, importa. Mas se alguém ainda sente falta de confirmação, registro-a pela via indireta de uma ressalva:
Conheci uma pessoa que, na empresa em que trabalhava, era a única moradora de favela que não hesitava em revelar o endereço. Orgulhava-se: "Na minha comunidade, só morre quem merece."
A lei e a justiça faltam, sempre. A escolha reduz-se à opção entre a tirania do tráfico e o arbítrio dos justiceiros. Há também o despotismo da polícia, mas esse assunto fica para depois.
Fonte: Cabeça de Porco de Luiz Eduardo Soares, MV Bill e Celso Athayde
Fonte: Cabeça de Porco de Luiz Eduardo Soares, MV Bill e Celso Athayde
José Mariano Beltrame, no Terra:
"Nós queremos o território, para tirar aquelas armas, aquelas drogas, aquela cultura do tráfico de perto das crianças, de toda uma geração que está vindo aí. E acabar com o cinismo do estado, de que não põe médico ou professor ali porque não pode entrar. O estado se libertou dessa responsabilidade usando cinicamente esse argumento. Fiquei muito feliz em ver a Prefeitura do Rio tão rapidamente realizando serviços. O secretário vai fazer seu trabalho lá, mas vai chegar um momento em que eu vou dar o serviço como pronto, como já está em três lugares. Tem que ficar claro que não é o policialzinho da UPP que vai segurar tudo sozinho. A gente está criando uma ambiência para a mudança."
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